Vocabulário Tradicional Madeirense (II)
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De tudo quanto se pensa ter já transmitido em matéria de vocabulário madeirense, eis que, na convivência rotineira, surgem novas expressões que imaginávamos ter como entendíveis a toda ou quase toda a sociedade portuguesa em território nacional.
Para nossa surpresa, é nestes momentos que nos apercebemos, penetrados da satisfação que para nós a convivência em solo madeirense inspira, de que há ainda muito vocabulário por explorar.
À descoberta dos regionalismos da Madeira
É, nomeadamente, quando levamos uma mão pensativa ao casco da cabeça e, com feição alajada, nos apusinhamos fofamente nas costas do sofá e encostamos o carrolo à almofada, que, pensando ter ouvisto o suficiente, damos conta do desfalque. Estaremos semeninhas? Nem tanto.
Com uma dorzinha na boca do estômago e o estrampalho a roncar, não sem sentirmos uma leve roeza ou naruega, uma força no rejete impele-nos a meditar com certa acuidade nestas questões de vocabulário e regionalismos. Mas, para lá da naruega, parece que agora sentimos a nossa consciência desprender-se para qualquer coisa de mais restrito, como sucedeu há pedaço, de forma semelhante, em que ouvimos o estalar da memória para uma recordação distante, num dia de snozinho brindado ao crepúsculo por uma garoazinha não ameaçadora, mas, que, com o aprofundar da noite, aos poucos se fizera sentir como levar uma malha.
Recordava eu insistentemente que havia lido, não trasantontem, pela mão de Alexandre Herculano, uma feliz brincadeira popular que trazia afinidade com o que em pequena a minha avó costumava debitar, pegando na minha mão, a curum da sua, dizendo: dedo mindinho, seu vizinho, pai de todos, fura-bolos, mata-piolhos. E assim, na minha felicidade assacanhada pelo sobrevir do tempo, brincava, enfartada de alegria e contentamento. Nem boquejava, apenas sentia, se for verdade o que aqui me lembro, e aparava a mão para receber uma grafadinha de qualquer coisa que a avó preparava para mim.
Eu, picega da luz que emanava da boa senhora, que tanto de mim cuidava, aconchegando uma soeira aos ombros, por causa do frio, dizia eu então, nessa época, não era mais que uma fraldrica com os dentes a bulir. Não faz minga, porém. Adepois, também me lembrei que, nesses tempos, a mãe ia à venda ementes nos decidíamos ficar por casa.
A avó, que nessa época estava em sui sinas, aguardava pachorrentamente a chegada da mãe. Certo dia, chegou a mãe ao pé da porta de casa, abriu o trinco, deu entrada, pousou o saco das compras no chão e, em se virando para alcançar a mão do frigorífico, estacou diante da cadela que tinha aboseirado o seu corpo a curum do saco, sem noção prévia do estrago, agatanhando com as unhas as pequenas alças semitransparentes de plástico.
Os ovos que a mãe trazia no saco, para além de embolajados com o peso da cadela, ficaram partidos; a fruta, naquelas condições, quedar-se-ia também embolajada, mas, curiosamente, sobreviveu ao choque.
Enxotada a cadela, com suave raspanete, a mãe, naturalmente, deu caminho aos ovos e ao saco. A danada da cadela tê-lo-á feito arrebendita? Foi malinjusto, mas não fez minga. A cadela decerto não terá tido intenções de paiteira, tão arteira e ardilosa, ao ponto de esmigalhar intencionalmente o conteúdo do saco que a mãe trazia.
A boa notícia é que o horário já aí vinha pelo que a mãe não teve de esperar um bom pedaço para nele entrar e seguir, de novo, para a venda e trazer os ovos – com cuidado redobrado, para os não deixar ficar alajados pela bujinha no regresso.
Glossário
Casco da cabeça – couro cabeludo
Alajada – forma arredondada, gorda e espaçosa
Apusinhamos – instalar-se confortavelmente
Carrolo – nuca
Ouvisto – aproveitamento dos verbos ouvir e ver
Semeninhas – doente
Estrampalho – estômago
Roeza – fome
Naruega – fome mais intensa
Rejete – tornozelo
Há pedaço – há pouco
Snozinho – nevoeiro
Garoazinha (chuva de asnos ou chuva de burros) – orvalho fino
Levar uma malha – levar uma sova
Trasantontem – os dias anteriores a anteontem
A curum – por cima de
Assacanhada – pisar
Boquejava – falar, pronunciar-se
Aparava a mão – dispor a mão de forma a receber
Grafadinha – uma mão cheia de algo
Picega – quase cega com pouca visão
Soeira – casaco de malha
Fraldrica – criança que usa fraldas
Não faz minga – não faz mal
Adepois – antes, há bocado, esta manhã
Ementes – enquanto
Sui sinas – bom estado de consciência
Aboseirado – o mesmo que apusinhar-se
Agatanhando – arranhar com unhas compridas
Embolajada – amachucar deformando aquilo que se amachucou
Arrebendita – de propósito, feito intencionalmente para o mal
Malinjusto – injusto (reforça o sentimento de injustiça)
Paiteira – pessoa que gosta de dar graxa, interesseira com bajulação e hipocrisia
Arteira – pessoa manhosa
Horário – autocarro
Bujinha / buja – nome afectuoso para cão bebé