Santuário de Nossa Senhora da Paz

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Um preâmbulo do milagre da Cova da Iria atribuído a Nossa Senhora de Fátima ocorreu a mais de trezentos quilómetros de distância, em terra distante dos principais polos urbanos nacionais, junto ao flanco ocidental da Serra Amarela. Por décadas, ninguém ouviu falar dele, até que um santuário se foi construindo, peça a peça, chamando a atenção de fiéis minhotos que cá peregrinam no final do mês de Maio.
O milagre de Nossa Senhora do Barral
O milagre foi relatado por um pastorinho de nome Severino Alves, analfabeto, pobre, órfão de pai, irmão de seis, que costumava deambular pelos vales afundados onde corre o Lima, à procura de pastos para os rebanhos abastecedores da bolsa da família.
Aqui, entre o Barral e Vila Chã de São João Baptista, no dia 10 de Maio de 1917, num lugar onde já antes dormitava uma ermida, a chamada Capela de Santa Marinha, o pequeno pastor, ainda com dez anos, ouviu um duro trovejar no cimo de um outeiro de modesta altitude, era ainda início da manhã. Quando correu para o sítio do trovão, encontrou uma senhora envolta em misteriosa e celeste luz, de uma beleza que nunca antes conhecera, sentada e de mãos repousadas no seu colo, vestida de branco e azul. Um misto de medo e de fascínio levou-o a soltar um exclamativo “Jesus Cristo”, e nesse momento, a mulher desapareceu.
Correu, ofegante, até junto do pároco, para lhe contar a história. O pároco sugeriu-lhe que ele lá regressasse amanhã à mesma hora. E acrescentou: diz à senhora “quem não falou ontem, que fale hoje”. Assim fez o pastorinho Severino Alves. No dia seguinte, 11 de Maio, retornou ao ermo onde tinha avistado a misteriosa senhora, e para seu espanto, lá a viu de novo, desta vez sem ser necessário um trovão a anunciá-la. Conforme o pedido do pároco, reclamou: “Quem não falou ontem, que fale hoje!”.
E a senhora, que afinal, percebeu Severino, era a Senhora, respondeu: “Não te assustes, sou Eu, menino…”. O pastorinho não queria acreditar. Estava diante da Mãe dos céus. E dela ouviu um aviso: “Diz aos pastores do monte que rezem sempre o terço, que os homens e as mulheres cantem a Estrela do Céu, e se apeguem comigo, que hei de acudir ao mundo e aplacar a guerra”. Nem o pequeno Severino Alves conseguiu balbuciar o que fosse, já a Senhora apontava para uns arbustos para lhes gabar os gomos e os bagos, fazendo o pastorinho desviar o olhar para onde Maria apontava. Assim que voltou a sua visão na direcção da Senhora, já ela desaparecera.
E novamente, foi o pastorinho em correria dar a notícia, não só ao pároco mas também a todos os miúdos e graúdos que conhecia, em especial às mães que tinham os seus filhos nas trincheiras da I Grande Guerra, assegurando-lhes que Nossa Senhora, a Rainha da Paz, lhe tinha comunicado o fim do tormento se a ela fossem devotos.
A vida de Severino Alves depois das visões do Barral
Severino Alves nunca se contradisse nas suas visões. Enfrentou cépticos, claro, dentro e fora da Igreja, alguns com ameaças próximas da agressão, e a eles retorquiu sempre da mesma forma – quem quiser que acredite, quem não quiser que não acredite, mas a história foi a que relatou e não a iria mudar, sobretudo tendo sido essa a ordem de Nossa Senhora. Os interrogatórios, nos anos que se seguiram ao suposto milagre, foram inúmeros, a começar por três teólogos destacados pela Sé de Braga e cujas conclusões da entrevista são desconhecidas. O interesse no relato de Severino foi caindo a partir da década de 1920, e voltou aquando da construção do santuário, cinquenta anos depois do avistamento, prolongando-se até à sua morte. Em todas as alturas em que foi interrogado, desde a meninice até à velhice, vincou que não mudava uma virgula ao testemunho dado em 1917.
As elites eclesiásticas desconfiavam da narrativa. Alguns, uma minoria, acreditaram em Severino Alves. Alegavam os seus defensores que o pastorinho sempre tinha sido criança honesta e bem comportada. Mais: a mensagem que a Senhora lhe tinha dado, referindo a oração à Estrela do Céu, era no mínimo intrigante, já que tal reza tinha possível origem medieval e era feita por aqueles lados, mas já quase ninguém se lembrava dela – foi preciso recorrerem à memória de um pároco e de uma velhota para se perceber que sim, a oração existia, e que era rezada e situações de guerra, embora tivesse caído no esquecimento há mais de quarenta anos. Ou seja, seria impossível ao pastorinho, com apenas dez anos, alguma vez ter ouvido falar da ladainha à Estrela do Céu sem ser por via da Aparição.
Severino, de resto, teve vida mundana. Renegou-se a fazer parte do mundo monástico ou paroquial. Qualquer tentativa nesse sentido falhou, como foi o caso da sua curta visita ao Seminário Maior de Braga, de onde saiu sem saudade, ou à sua ingressão num Colégio de fundação Jesuíta, na Galiza, onde foi cavador, sobre o qual confessou, mais tarde, de que nem sequer “podia com a enxada”. Trabalhou e residiu por duas vezes em Lisboa, hospedando-se em casa de um conterrâneo, o Cónego Avelino, de quem falarei mais à frente. Severino casou, foi pai, e morreu com 78 anos, em 1985, numa altura em que as peregrinações ao lugar do milagre que afirmou ter testemunhado estavam em altas.
Se o milagre pode ser contestado, o santuário dedicado à Senhora da Paz é agora uma realidade inegável. A oração da Estrela do Céu é hoje entoada no Santuário de Nossa Senhora da Paz no final de cada terço. E cem anos depois das Aparições do Barral, o Papa Francisco deu Bênção Apostólica aos piedosos que aqui se deslocam, o que acontece com maior frequência no último fim de semana do mês Maio, mês que, por acaso ou não por acaso, até é consagrado a Maria.

Capelinha da Senhora da Paz mediada pelo Sagrado Coração e a Pomba da Paz

Entradas para a capelinha (ao centro) e para a cripta (à direita)

O estranho altar da cripta da Senhora da Paz
Nossa Senhora do Barral, Nossa Senhora de Fátima, e um santuário que tardou cinquenta anos
Há poucas diferenças entre o milagre de Nossa Senhora de Fátima e o milagre de Nossa Senhora da Paz (ou de Nossa Senhora do Barral, como alguns a chamam). Ambos são aparições feitas a pastorinhos. Ambos relatam uma mensagem de Nossa Senhora com referências à paz e à necessidade de oração. Ambos testemunham Maria como muito bela e envolta em luz. Ambos aconteceram no mesmo ano – na realidade, de acordo com a datação oficial, têm apenas três dias de distância, sendo o do Barral mais antigo. Estas coincidências não são exclusivas aos dois milagres acima mencionados. Se formos a outras Aparições, não só cá, como também noutros países ditos Católicos, nomeadamente na vizinha Espanha, as características repetem-se: veja,se, por exemplo, os casos da Senhora da Pegadinha, também no concelho de Ponte da Barca, que desvela uma lenda relacionada com o aparecimento de Maria a crianças pastoras, ou da Virgem das Dores de Chandavila, relacionada com o fim da II Guerra Mundial.
Mas fica então a pergunta. Com dois milagres coevos tão idênticos, o do Barral e o de Fátima, por que razão sobreviveu o de Fátima, com a dimensão mundial que toda a gente conhece, deixando ao esquecimento um outro que até o antecede.
As respostas podem ser muitas. Eu arrisco algumas. Em primeiro lugar, o facto do milagre de Nossa Senhora de Fátima ter sido observado por três pastores e não apenas por um poderá ter levado a cúpula eclesiástica a considerar mais fidedigno este em detrimento do do Barral. Em segundo, diria que a vida que Severino Alves levou, uma vida normal, com casamento e filhos, desligada de seminários ou ordens religiosas e afins, prejudicou os seus relatos em relação aos de Irmã Lúcia, a única pastorinha de Fátima a chegar à idade adulta, que dedicou a sua vida à religião enquanto Doroteia e, depois, Carmelita. Em terceiro, a geografia de Fátima, bem mais favorável do que a do Barral – Fátima está, afinal de contas, no centro do país, a igual intervalo do norte e do sul de Portugal, e a tolerável distância face a Lisboa, mesmo na realidade de 1917; o Barral, ao invés, fica na periferia da minhota vila de Ponte da Barca, num vale de onde já se vêem as alturas nevadas do Gerês. Por último, e mais importante, a ideia de que a partir de certo momento o milagre do Barral, por ser anterior, poderia ameaçar todo o investimento espiritual e financeiro que havia sido realizado em Fátima, que se revelaria fundamental para a doutrinação de um novo regime bastante combativo ao republicanismo laicista (quando não assumidamente ateu).
As razões acima descritas levaram a que durante décadas nada tenha sido construído no lugar do avistamento de Nossa Senhora da Paz: nem igreja, nem ermida, nem imagem. Sendo certo que, depois de Severino Alves ter promovido a mensagem da Senhora à sua vizinhança, houve devotos a dirigir-se até cá. Sendo de conhecimento público que um advogado portuense, dedicado católico, de nome Sebastião Pereira de Vasconcelos, com mulher ligada a Ponte da Barca, ao saber dos relatos do Barral, decidiu entrevistar Severino Alves e promoveu a Aparição por ele testemunhada em dois jornais – e essa divulgação, que desses periódicos se propagou a outros, ajudou a que mais crentes na Senhora da Paz, provavelmente desgastados com a demora da I Grande Guerra, tenham rumado a este lugar. Sendo sabido até que o Bispo do Porto, ao ler acerca do que tinha acontecido no Barral, concedeu cem dias de indulgência a quem rezasse a Estrela do Céu. Sendo todos os pontos anteriores óbvios estímulos ao crescimento da popularidade da Senhora da Paz, é, ao mesmo tempo, evidente que as peregrinações daí resultantes não passaram de movimentos orgânicos, de alguma forma ainda a uma escala regional, vistas com desconfiança por parte da autoridade religiosa, em concreto pelo Arcebispo de Braga que não parou de aconselhar os peregrinos a refrearem a sua adoração à miraculosa Virgem do Barral.
Dez anos depois das proclamações de Severino Alves, já ninguém se lembrava delas, nem dele. As caminhadas de fé até ao sítio onde a Senhora da Paz aparecera cessaram. Na década de 1930, este lugar foi conquistado pelo vento e pelo silvado. Longe, muito longe, portanto, do que se viria a verificar em Fátima.

A recente Igreja do Imaculado Coração de Maria ao fundo

Um espaço de três salas – uma de boas-vindas, outra dedicada ao quartzo recolhido nestes termos, e outra consagrada ao milagre da Senhora da Paz
Porém, cinquenta anos depois, o mesmo milagre de Fátima que eclipsou a Senhora da Paz, tornar-se-ia o responsável pelo seu ressurgir. Para isso é preciso falar de um homem inteligente e controverso, natural do Barral, chamado Avelino de Jesus da Costa, que ascendeu a cónego da Sé de Braga e a Professor Universitário de Coimbra, seguidor de Cerejeira e apoiante de Salazar. O Cónego Avelino, título por que gostava de ser tratado, era um dos maiores impulsionadores do fenómeno de Fátima, e foi no quinquagésimo aniversário do milagre da Cova da Iria que alguns estudiosos, ao saberem da naturalidade de Avelino, lhe perguntaram acerca desse tal outro milagre acontecido na sua terra natal. O cónego põe mãos à obra. Um comunicado intitulado “Aparições do Barral” é entregue no Congresso Mariano Internacional por ocasião dos cinquenta anos das Aparições de Fátima. Por ironia, o Barral, que com Fátima morreu, com Fátima ressuscitou.
A partir daí, o número de peregrinações cresceu de ano para ano e o Cónego Avelino, agora apoiado pela Confraria de Santa Ana, arregaçou mangas para que neste outeiro passasse a existir edificado aberto à liturgia. Primeiro veio uma alminha com a imagem da Senhora da Paz – parece coisa pouca mas não, tratou-se do primeiro objecto a oficializar o culto. Depois, no final da década de 1960, houve necessidade de cá se construir um templo, no caso uma capelinha, munida de meia dúzia de bancos corridos, escassos assentos para a procura de que o lugar já gozava. Não chegando a ermida, complementou-se a mesma com uma cripta, um invulgar espaço de celebração no subsolo da capela e do adro decorado com ingénuos painéis de azulejos e um altar invulgar – um bloco de quartzo, há quem diga que o maior do país, protegido por uma armação em vidro. E quando já nem a cripta somada à capela davam conta dos crentes, fez-se a Igreja do Imaculado Coração de Maria, de maior dimensão, com três naves, construída no pico das peregrinações, isto é, na década de 1980.
Outros monumentos foram surgindo a completar o lugar sagrado. Em 1974, a imagem de Jesus e do seu Sagrado Coração pousados num cubo de quartzo, à qual se juntou, em 2017, no centenário da Aparição, um baixo relevo representativo do milagre esculpido na sua base. Ao lado da estátua a Cristo, uma outra alusiva à paz, com uma pomba em bronze a rematar uma coluna também em quartzo. Em 1982, levantou-se a patriótica estátua ao Anjo de Portugal, protector dos portugueses, adivinhe-se, igualmente levantada em cima de um montículo de quartzo. Com tanto quartzo nos templos e na estatuária, quartzo esse extraído de pedreiras conterrâneas, mal seria se não lhe fizessem justiça: e lá chegou o Museu do Quartzo, um espaço de três salas, a primeira com recepção e loja, a segunda informativa da rocha em causa, e a terceira explicativa do milagre e do Santuário de Nossa Senhora da Paz.

Baixo relevo sob a estátua do Sagrado Coração reproduz milagre de Nossa Senhora da Paz

Anjo de Portugal, protector dos portugueses

A imagem da Senhora da Paz, reproduzida conforme relatada no milagre
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Mapa
Coordenadas de GPS: lat=41.79717 ; lon=-8.34378