Festa das Papas

by | 16 Fev, 2018 | Beira Baixa, Festas, Julho, Províncias, Tradições

Monumentos

Natureza

Povoações

Festas

Tradições

Lendas

Insólito

Uma celebração particular, dedicada a São Sebastião, é feita em vários pontos do país. Conta sempre com o mesmo nome: Festa das Papas. E a todas elas é associada uma lenda que é, na essência, igual em todo o sítio onde é festejada.

São Sebastião enfrentou uma praga de gafanhotos e o povo agradece-lhe desde então, com filhoses e papas de carolos

Que papas são estas?

Chamam-nas Papas de Carolos e são feitas de farinha grossa de milho. Essa será a principal diferença para a farinha de milho normal, bem mais moída do que esta aqui falada.

Tendo em conta que na Beira há mais milho do que arroz, decidiu-se fazer um doce muito próximo do arroz doce, mas onde o milho moído substituiria o arroz que escasseava.

É feita à base de sal, leite, açúcar amarelo e um pouco de laranja – no final, tal como acontece no arroz doce, tempera-se com canela.

Em Gondiães e Samão, contudo, as papas têm um significado diferente, e embora sejam feitas com milho, não são doces – aliás, são mesmo cozidas em água que antes serviu para aprimorar o entrecosto. Há ainda algumas terras que resolvem usar a abóbora em vez do cereal.

Siga-nos nas Redes Sociais

As Festas das Papas são um agradecimento a São Sebastião por ter livrado a terra de uma praga de gafanhotos

Onde há Festas das Papas?

Honestamente, deverão existir em mais terras do que aquelas que sei.

Garantidamente, há a Festa das Papas na Póvoa de Atalaia (no concelho do Fundão, Beira Baixa, provavelmente a mais famosa de todas, e que é festejada em Janeiro), na Lardosa e em Janeiro de Cima (ambas no concelho do Fundão, exactamente nas mesmas datas que a anterior), em Alcains (também concelho do Fundão, e que é festejada em Julho), Samão (concelho de Cabeceiras de Basto, no Minho), Gondiães (também concelho de Cabeceiras de Basto) e Sôsa (concelho de Vagos, na Beira Litoral).

Soube que Torroselo (concelho de Seia, na Beira Alta) as fazia, no mês de Maio. Um leitor deste espaço informou-me que a festa se mantinha e que estava de boa saúde.

Indo uma a uma.

Festa das Papas de Póvoa de Atalaia

De todas, é possivelmente a mais badalada. Feita num par de dias, e sempre no fim de semana do terceiro Domingo de Janeiro.

Conta com confecção de filhoses (também chamadas de coscoréis) mas não esquece o papel principal que as papas  de carolos têm. Para essas há um séquito, o Cortejo das Papas. Mulheres (as mordomas), com quilos de papas em cima da cabeça, viajam até à Capela de São Sebastião onde cada refeição é benzida e, posteriormente, distribuída pela população. Para isso colocam-se as papas em pequenos cestos decorados que serão ofertados aos locais por homens vestidos apropriadamente.

A base da festa reside numa lenda que lembra uma invasão de gafanhotos destruidores de colheitas. Fizeram então uma promessa ao seu santo protector: caso São Sebastião poupasse a Póvoa de Atalaia da praga que aí vinha, os aldeões cozinhariam papas como dádiva ao bem-aventurado, como agradecimento. E assim foi. Foi tão óbvia de onde vinha a ajuda que todos os gafanhotos foram vistos mortos junto à porta da sua capela. A partir daí, todos os anos, Póvoa de Atalaia dá o seu obrigado a São Sebastião.

Festa das Papas de Lardosa

Chamada de Bodo, é muito similar à que acontece na Póvoa de Atalaia: cozinham-se também filhoses e papas. É igualmente criada em honra a São Sebastião a quem se dedica cortejo (que, tal como na festa mencionada atrás, é realizado por mulheres).

A mesma lenda é contada aqui, alterando-se a terra que foi poupada aos gafanhotos – em vez da Póvoa de Atalaia, foi Lardosa a protegida pelo santo.

Festa das Papas de Janeiro de Cima

Tal como em Lardosa, é apelidada de Bodo.

A lenda que a sustenta é ligeiramente diferente e mais próxima da que irá inspirar as Festas das Papas do concelho de Cabeceiras de Basto: não foi uma praga de gafanhotos mas sim uma peste que causou pânico. A população de Janeiro de Cima, em sofrimento, foi pedir ajuda à vizinha Janeiro de Baixo. Esta rejeitou com medo da infecção, mas, durante a noite, alguns aldeões de Janeiro de Baixo resolveram dar uma mão e levaram uma imagem de São Sebastião até à margem da povoação afectada, salvando-a do pior.

Festa das Papas de Alcains

Ao contrário da de Póvoa de Atalaia e das restantes praticadas na Beira Baixa, acontece no Verão e não no Inverno (já foi em Setembro, passou para Agosto, e agora é em Julho). As papas que aqui se cozinham são as mesmas. Por vezes a festa pode alargar-se a dois dias inteiros.

Há concertos durante a noite e o dia é dedicado à comezaina, com direito ao tirar do milho, ritual que consiste num bailarico em roda da aldeia que, com a ajuda de um homem, vai recolhendo milho que irá fornecer as papas. Ao final da tarde, o cereal é colocado em várias caldeiras, aquecidas no chão e mexidas com uma comprida colher de pau.

A esta festa está igualmente associada uma lenda que fala de uma praga de gafanhotos que se espalhou pela terra e que São Pedro, por milagre, conseguiu afastar. As papas passariam a ser, assim, uma dádiva que o povo de Alcains resolveu dar ao santo que os salvou de más colheitas. A lenda encontra paralelo com a que se conta na Póvoa de Atalaia, referenciando, no entanto, São Pedro, que é comemorado em Julho.

Festa das Papas de Samão e Gondiães

As duas povoações vão-se revezando, sendo Samão encarregado da Festa das Papas nos anos ímpares e Gondiães nos anos pares – ambas preparam a festa em Janeiro.

Tem algumas diferenças das festas praticadas no concelho do Fundão porque a lavoura é outra: no Minho, a comida muda, e aqui privilegia-se o pão, a broa, o porco e o vinho verde. As refeições são também benzidas e carregadas em cortejo (embora aqui os carros de bois substituam as mulheres).

Mais uma vez, a Festa das Papas de Samão e Gondiães vem a reboque de uma lenda que diz ter sido São Sebastião que afrontou uma epidemia que matou gado nas redondezas mas não nestas duas povoações.

Festa das Papas de Sôsa

Mais para o litoral, Sôsa, concelho de Vagos, faz as papas com abóbora.

Aqui a protecção pedida a São Sebastião parece ser mais recente – soldados portugueses que lutaram na I Guerra Mundial buscavam protecção na sua aura ( e São Sebastião é, entre outras coisas, padroeiro dos soldados). Depois de anos votada ao esquecimento, a festa regressou na segunda metade do passado século.

Festa das Papas de Torroselo

Como na maioria dos casos, o milho e o leite voltam a ser reis nas papas desta freguesia senense.

Torna a lenda que versa uma epidemia que foi bloqueada por mão santa na Idade Média. É realizada no segundo Domingo de Maio, mas em honra a São Martinho e não a São Sebastião, razão pela qual desvia a data de comemoração para um mês diferente.

 

As ofertas a São Sebastião

São Sebastião é conhecido por ser padroeiro contra pestes ou outro tipo de desastres – além de ser também padroeiro dos soldados, o que o liga à sua reputação junto dos militares de Sôsa que sobreviveram à I Grande Guerra. E como se pode ver pelas variantes que cada povoação conta (seja o desastre uma praga de gafanhotos ou uma epidemia), parece natural que São Sebastião surja como milagroso e salvador.

Como se viu, há uma clara concentração do culto a São Sebastião nas povoações do concelho do Fundão – isto apesar de termos, como já falado, Festas das Papas em vários pontos do país, nomeadamente nas Beiras e no norte. E toda a aldeola conta como o santo poupou a sua terra depois de as restantes terem sido dizimadas. Ora, como está bom de ver, existe aqui um paradoxo: se uma lembra a história de como foi a única terra a esquivar-se a uma praga, como é que outra aldeia, mesmo ao lado, diz o mesmo?

A lenda dos gafanhotos (ou da peste, como preferirmos, porque o princípio é o mesmo em ambas), parece ter sido colocada estrategicamente em cada aldeia e vila para cobrir antigos cultos a Deidades ligadas às sementeiras. As papas que são benzidas pelo padre local apontam para aí – ofertas a Deuses que agora são Santos, como forma de cair na boa vontade Deles e receber ventura no novo ano agrícola.

Siga-nos nas Redes Sociais