Capeia Arraiana

by | 11 Jul, 2017 | Agosto, Beira Alta, Festas, Julho, Províncias, Tradições

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No concelho do Sabugal, a Capeia Arraiana espraia-se por várias povoações, concentrando-se nas que figuram mais perto da raia. Nessa altura, e falamos do sempre desejado Agosto, é tempo de regressos: as gentes que dali saíram para o litoral à procura de trabalho, ou para o estrangeiro à procura de ordenado, à boa casa tornam. É mês de exaltar a terra que os viu crescer, num dos gestos identitários mais carismáticos de Portugal.

Um Forcão onde cabe um grupo de homens que, em Agosto, retorna ao berço. Tudo para passar por este papel de iniciação: o enfrentar da força bruta de um touro bravo.

As Capeias do Sabugal

As freguesias que cumprem a tradição da Capeia Arraiana nos tempos mais recentes são Ozendo, Soito, Rebolosa, Alfaiates, Aldeia Velha, Vale de Espinho, Fóios, Lageosa, Forcalhos, Quadrazais, Aldeia do Bispo, Nave e Aldeia da Ponte. Outras já fizeram parte, e algumas destas cessaram de fazer a Capeia mas retomaram-na mais tarde.

Uma Capeia Arraiana, enquanto festa, engloba muita coisa, embora haja uma pela qual todos esperam: a pega ao forcão, ou seja, a Capeia em si. De qualquer forma, os organizadores (a nomeação destes Mordomos é feita de um ano para o outro, sendo os papéis atribuídos no final de cada festa) pegam nisto como um conjunto de práticas. Trata-se, mais que tudo, de uma celebração popular, de um enorme arraial, com música e copos e barraquinhas com enchidos locais. Tudo isso é financiado por contribuições dos Mordomos e de outros dadores, por vezes empresas.

De qualquer forma, quando falamos especificamente em Capeia, referimo-nos à actividade central, que é o ritual tauromáquico tão singular e próprio desta região do país. Essa realiza-se, salvo certas excepções, no largo principal das aldeias que as fazem, ficando todas as tendas que vendem comes e bebes em redor do centro de cada lugarejo. Até à pega, há três actos que merecem nome próprio – o Encerro, o Boi da Prova e o Pedir da Praça -, e um outro que só chega no final – o Desencerro.

Indo uma por uma. O Encerro constitui a leva de toiros da herdade onde ficaram em espera até aos curros onde deverão aguentar até serem trazidos para a praça – antes um hábito transfronteiriço, onde homens em cavalos, com a ajuda de vacas, iam buscar toiros a Espanha, agora modernizado com o apoio de carrinhas que carregam os animais. Logo depois vem o Boi da Prova: a anteceder o almoço, a povoação junta-se próxima dos curros e avalia cada um dos bois que vão à prova do Forcão. E mesmo a anteceder a pega, vem o Pedir da Praça, momento mais solene onde um Mordomo (ou vários) se dirige formalmente a alguém de alta patente autárquica ou simbólica e pede para que a Capeia se inicie, devendo o receptor da mensagem, que muitas vezes é o Presidente da Junta de Freguesia, aceitar o pedido e dar um pequeno discurso sobre as generosidades de tal espectáculo.

Homens preparam-se para enfrentar o touro

Tradições da tauromaquia raiana, no Sabugal

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E eis que, depois de entregue a praça, chega a apetecida Capeia. Um grupo de homens que varia entre as duas e as três dezenas levanta o Forcão feito de carvalho e pinho, um triângulo amadeirado com o vértice voltado para trás que conta com um peso à volta dos trezentos quilos. À frente, e pelo menos para o primeiro toiro da prova (há cerca de seis ou sete no total), distribuem-se os Mordomos, na parte onde o povo chama de galhas, dividindo-se esta em duas – a galha esquerda e a galha direita. É a zona de maior perigo, tendo em conta que é a fachada do forcão, ou seja, o eixo que está virado para os cornos do toiro e que leva com as investidas. Lá atrás, no rabicho, há outro papel importante: um ou dois homens tomam o leme, fazendo-o rodar de maneira a que as galhas estejam sempre de frente para o animal. Entre a gente posicionada nas galhas e os rabichos, alinham-se outros que vão dando ordens e aguentando o peso a meio. A grande dificuldade, além da rodagem, é manter o Forcão a uma altitude equilibrada, isto é, não demasiado baixa para que o toiro o transponha de um salto, nem demasiado alta para provocar uma marrada vinda de baixo.

Assim sucede até toda a ganadaria estar rodada, altura de pousar o Forcão e ver alguns corajosos a atiçarem o toiro só com o corpo.

No final, chega o Desencerro, capítulo que apenas se apresenta em algumas das freguesias do Sabugal, e que consiste na leva dos touros até à zona onde antes pernoitaram. Só daí são depois devolvidos às ganadarias de onde foram trazidos. Ao final da noite, impreterivelmente, há jantarada, momento onde os Mordomos desse ano passam a tocha aos do ano vindouro.

História e origem da Capeia Arraiana

A história desta tradição pode ser mais longínqua do que a que vem nos livros.

Se formos a registos escritos, ela aparece em documentos do século XIX, sendo depois sublinhada por alguns suprassumos da etnografia portuguesa, como é o caso de Leite de Vasconcelos. Por aí, dizia-se que a Capeia era feita com bois vindos do lado espanhol, numa tradição de Riba-Côa: contrabandistas portugueses gingavam com o gado hermano e, muitas vezes, traziam-no para o lado de cá da fronteira para exibirem habilidades – uns bois eram meio roubados (embora devolvidos mais tarde), outros eram mesmo emprestados pelos espanhóis como forma de compensar todo o dano que os seus animais faziam nos pastos portugueses. E isto é aquilo que se sabe porque alguém o escreveu.

Contudo, falando de testemunhos orais, já por essa altura – e falamos do início do século XX -, se dizia que a pega ao Forcão sempre se fizera, pelo menos até onde a memória de gerações passadas ia. Ou seja, apesar dos textos chegarem apenas até a paragens oitocentistas, o hábito perdia-se além disso.

Hoje em dia, é comum várias freguesias do Sabugal disputarem entre si o lugar de pioneiro na criação da Capeia Arraiana. É difícil dizer quem terá razão.

O que não é difícil afirmar, com toda a segurança, é a forma como o Taurus sempre foi elevado à condição mitológica, estando representado em constelação desde tempos profundos.

Já aqui falámos dos Forcados e da sua evolução ao longos dos séculos, mas fizemos a ressalva de que nem todo o seu passado aparece nos panfletos descritivos. A verdade é que o boi, ou o touro, neste caso, foi alvo de divinização na Península Ibérica. A idolatria que existe por tal animal em Portugal e em Espanha só tem comparação com a que se vê noutros de influência cultural ibérica, como os países da América do Sul.

Para lá de toda a polémica existente com as controversas touradas, não há como negar que existe uma ligação ancestral e etnográfica entre homem e touro (ou boi, como acontece nas Achegas de Bois no norte do país), e que este elo é ainda mais vincado da cordilheira pirenaica para baixo. E, tal como acontece com os Forcados, assiste-se na pega com Forcão a uma certa forma de emancipação, um rito iniciático que transporta o jovem para a idade adulta, sendo o toiro o obstáculo físico e simbólico que consuma essa passagem. Mesmo que ultimamente quem integre o Forcão já não seja o jovem a chegar à idade adulta, assim era antes, e essa função mantém-se bem visível no acto de hoje. Essa mesma iniciação pode ser observada na lenda do Labirinto do Minotauro. É o gaiato a vencer o último estágio de jovialidade e que, perante a adversidade, mostra ter a força de um homem.

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