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Soube do Vinho dos Mortos numa comezaina de fim de ano. Na altura, disseram-me apenas ser de Trás-os-Montes, e lembro-me de ter pensado: com esse nome, deve ser coisa de Montalegre. Montalegre é dado a estas diabruras, como são caso a embruxada Sexta-Feira 13 ou a paganizada Igreja de Vilar de Perdizes. Resolvi ir pesquisar sobre ele numa página enciclopédica que gosto de acompanhar, a in Vino Viajas, de Rogério Ruschel. Falhei por pouco. É um produto de Boticas, concelho vizinho e igualmente entregue às temáticas da espiritualidade popular.

Todos os vinhos são feitos por vivos. Este também. A razão para o seu nome, Vinho dos Mortos, é resgatada ao século XIX, por ocasião das Guerras Peninsulares, em especial pela Segunda Invasão comandada pelo Marechal Soult. De tudo o que de mau daí veio, e foi muito, houve, de acordo com o que agora se relata, vinho enterrado como defunto, resultando na designação hoje conhecida.

A Segunda Invasão Francesa e o primeiro Vinho dos Mortos de Boticas

1809. Napoleão vence na Corunha e de seguida toma várias cidades galegas. Muitos galegos vão recuando e recuando até serem obrigados a atravessar a fronteira com Portugal e aí se refugiarem. Os franceses, chegados a Tui, planeiam a travessia do Minho para depois se dirigirem para o Porto e, por fim, para Lisboa. Era a Segunda Invasão, chefiada por Soult sob orientação de Bonaparte, que pretendia vingar a primeira, iniciada em 1807 e derrotada no Verão de 1808 com preciosa ajuda inglesa.

A superação do rio Minho revelou-se um fracasso. Tropas portuguesas e galegas, amparadas pelo forte de Caminha, receberam as barcas gaulesas com pólvora. Soult não conseguiu trasladar o seu exército para território português e decide não insistir. Ou antes, não insistir naquele sítio. Sentiu que para entrar em Portugal deveria fazê-lo por territórios mais interiores, mesmo que isso implicasse o cansaço adicional de mais uma jornada, ainda por cima em terreno acidentado. O tempo deu-lhe razão. Deslocando-se até Ourense, Soult meteu pés em solo nacional junto a Chaves.

Em Chaves, a resistência quebrou. Houve quem tenha enfrentado o exército bonapartista, mas a maioria das tropas retraiu-se, sob instrução do Brigadeiro Silveira, até uma zona um pouco a sul da cidade flaviense. Soult agradeceu a retirada e fez de Chaves o posto operacional antes de se pôr a caminho do seu primeiro objectivo, ocupar o Porto.

O povo do Boticas, conhecendo a fama dos soldados franceses, que por onde passavam não se inibiam de levar o que lhes aparecesse à vista, resolve guardar o que considerou elementar para a sua sobrevivência. E o que era fundamental por essa altura continua a ser o que é fundamental no presente: a base de qualquer almoço à portuguesa – pão e vinho sobre a mesa. Esconderam-se então os cereais e as garrafas de tinto por baixo de terra pisada. E depois esperou-se que os pelotões de Soult transitassem em direcção a Braga, via Serra da Cabreira.

Passado o perigo, os botiquenses destaparam o que haviam ocultado de olhos gauleses. Para o vinho não havia grande esperança. Mas ao provarem – surpresa! -, o raio do vinho estava diferente. Diferente para melhor. Provavelmente nem sabiam bem o que teria acontecido. Se foi a humidade, a falta de luz, o frio, a refermentação. E desde então, o vinho, em Boticas, passou a levar com uma etapa complementar – a do estágio em garrafa debaixo de um cobertor de saibro.

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A lenda, o marketing, a realidade

Claro que o relato acima pode não ter acontecido exactamente assim. Por exemplo, é no mínimo dúbio que aquilo que se escondeu dos franceses fossem garrafas, pelo menos no sentido como as conhecemos hoje, em vidro e semelhantes entre si. Antes da Revolução Industrial, o vidro não era propriamente um material de massas. Poucos o tinham, por ser de caro fabrico. E mesmo quando era usado com vinho, servia sobretudo como forma de transporte, da barrica para a mesa, e não enquanto aprovisionador.

Estamos a deixar testemunhos às gerações vindouras, tal como gerações finadas passaram às nossas. A tradição oral é isso, uma longa narrativa, orgânica e dinâmica, que perdura por séculos, adaptando-se aos contextos. Pode haver na história do Vinho dos Mortos uma parcela histórica, que reproduz a realidade como ela foi, mas também pode haver uma faceta lendária, romanceada pelos pais que contavam o episódio aos seus filhos em conversas de adormecer.

Voltando à improbabilidade das garrafas de vinho. Pode de facto ter existido uma ocultação do vinho botiquense – e eu acredito que sim – mas a maneira como o fizeram foi-se moldando com o passar das décadas. Talvez se tenham escondido pequenas pipas ou vasilhames, e a modernidade apropriou-se do relato transformando tais dispositivos em garrafas de vidro, porque agora é assim que armazenamos o vinho – bem se diz, quem conta um conto, acrescenta um ponto.

É mais do que normal que alguns produtores de Boticas tenham aproveitado o folclore usado em torno do método de estágio do seu vinho para enriquecer a sua marca. E fizeram bem, porque goste-se ou não, é um néctar particular. A juntar, criou-se um espaço que promove a lenda e exemplifica como foi o vinho encoberto, visitável para quem tiver curiosidade de saber mais.

O Vinho dos Mortos dos Sousa Pereira

Actualmente, há em Boticas uma família a produzi-lo, numa velha casa tornada adega: os Sousa Pereira, primeiro pelo pai Armindo, depois pelo filho Nuno, tendo a mãe Hermínia como apoio consultivo. São eles os responsáveis pela marca Vinho dos Mortos, registada em 2008, cujas garrafas podemos comprar em lojas especializadas ou online. É resultado de um mash de castas e trabalhado artesanalmente, com vindima à antiga, arrematada com festança, e com pisa ao pé.

Foi feita uma renovação da imagem recentemente, muito bem sucedida, por sinal. A garrafa está mais bonita, o rótulo também. Em acréscimo, Nuno Sousa Pereira diversificou e até já disponibiliza alojamento local em Boticas para quem quiser conhecer o berço, perdão, a tumba do Vinho dos Mortos.

Parece que a produção esgota, principalmente por culpa do mercado nacional, mas não só – a emigração dá outro empurrãozito e alguma curiosidade europeia idem. Houve aquisição de mais terreno em Boticas para aumentar a oferta – sempre vinha de encosta, porque este é tinto transmontano, e vá lá arranjar-se espaço sem serra em Trás-os-Montes.

Eu, que o provei na colecta de 2021, a acompanhar uns bons peitos de frango recheados com espinafres e queijo parmesão, contrario muita descrição que tenho lido por aí, quase toda replicada uma da outra. Sim, o Vinho dos Mortos tem aquele pico de gás de que toda a gente fala e isso coloca-o na prateleira dos bons tragos de Verão – de resto, ter piquinho não é assim tão incomum nos vinhos nortenhos, veja-se os Verdes minhotos. Mas o que mais o distingue, a meu ver, é a acidez. Uma acidez fresca, que alguns dirão ser meio amorangada ou aframboesada, mas que remeto mais para a ameixa vermelha, quando a comemos com casca, a contrair as esquinas da boca. Gosto muito dele – e posso dizê-lo sem vergonha porque não estou a mentir.

Se o gosto vem do seu estágio no subsolo, a servir de companhia aos sucumbidos de Boticas, não sei. Faz-me algum sentido que a ligeira gaseificação venha daí, de uma segunda fermentação congestionada pela selagem da garrafa entretanto enterrada. A pungência da acidez talvez não. Ou talvez sim. Um segredo que me resigno em não tentar decifrar desde que as colheitas continuem a sair assim tão bem.

Mapa

Coordenadas de GPS: lat=41.68995​; lon=-7.67166

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