Túmulos de Pedro e Inês

by | 1 Jun, 2016 | Estremadura, Lugares, Monumentos, Museus e Exposições, Províncias

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Shakespeare escrevia sobre coisas destas. Inventou um Romeu e uma Julieta e ficou famoso a versar sobre a tragédia que se ia abatendo sobre eles. Mal sabia ele que por cá, mesmo admitindo que apenas um décimo desta nossa história de amor seja verdade, tivemos uma violenta tragédia que, mais do que uma ficção de um livro shakespeariano, foi uma realidade no seio da família mais poderosa do país.

A homenagem que se faz, todos os dias, a essa paixão desmedida e violenta, está exposta no Mosteiro de Alcobaça, nos túmulos de Pedro e Inês, a dar força às palavras de um amor que, quando toma dimensões oceânicas, não parte. Mas sobre esses mausoléus desconcertantes falaremos adiante.

A Lenda de Pedro e Inês

Sobre o episódio, poucos serão os que nunca ouviram falar dele. Vão-se acrescentando, ao longo dos séculos, algumas exclamações, variações que tornam difícil discernir o que foi passado histórico e o que foi passado mítico. Mas que o caso amoroso entre D. Pedro I e D. Inês de Castro teve muito de cada um, não parecem existir dúvidas. E por isso, far-se-à uma releitura daquilo que se passou, misturando o fabuloso com o factual, não deixando nada de lado, nem o mais verosímil, nem o mais exagerado, se é que há exageros numa história de amor.

D. Pedro, então príncipe e filho do rei D. Afonso IV, iria desposar D. Constância de Castela, e assim o fez. Tratava-se, como era hábito, de um político, que de flamejante pouco ou nada tinha. Contudo, D. Constância acabou por fazer com que o príncipe português se apaixonasse, mas não por quem devia – antes por uma das aias da Senhora de Castela, uma jovem galega, descendente da nobreza do noroeste peninsular. D. Pedro teve daquelas paixões que arruínam os sentidos, ainda mais quando se mostrou correspondida. Toda a alta aristocracia sabia desta relação proibida e ardente, partilhada entre duas pessoas que não deveriam sequer falar-se. E o assunto, para o rei, era grave, politicamente falando – deveria, a qualquer custo, ser varrido dos ouvidos da corte, evitando que qualquer burburinho se escapasse dali.

Entretanto, em 1345, D. Constância morreu. D. Pedro viu a oportunidade de finalmente poder assumir uma relação com a sua amada de sempre, a única que até ali tinha sido verdadeira. Contudo, D. Afonso IV manteve a posição que durante anos fincou: um eventual casamento entre D. Pedro e Inês de Castro não seria visto com bons olhos, podendo inclusivamente fazer tremer a soberania do reino, negando-o a seu filho. Mas nisto do amor, a disciplina, mesmo na realeza, não existe. Pedro e Inês continuavam a encontrar-se clandestinamente, tendo quatro filhos.

O rei, farto de não ter mão no assunto, resolve acabar com a relação de forma atroz: encontrando-se o príncipe fora, manda homens da sua confiança assassinar Inês de Castro, em Coimbra, naquela que ficou convenientemente conhecida como Quinta das Lágrimas.

D. Pedro, como seria de esperar, explodiu de ódio e revolta e vingança. Mas, qual Monte Cristo português, teve sangue frio, e esperou, e esperou, e esperou. Esperou por três anos, até ao dia em que foi coroado rei. Aí, lançou-se numa impiedosa perseguição aos assassinos de Inês de Castro, matando-os cruelmente, sacando-lhes o coração pelas costas.

Garantiu à corte que tinha mesmo casado às escondidas com Inês de Castro e que, portanto, ela era Rainha de Portugal e assim deveria ser tratada, mesmo a nível póstumo. Levou a promessa tão à letra que fiou a cena mais macabra que a imaginação humana consegue pensar. Ordenou que D. Inês fosse retirada do seu túmulo, já em evidente estado cadavérico, levada para o trono onde pertencia e por lá coroada. No fim, obrigou os seus súbditos a beijarem a mão da sua rainha, à altura nada mais que osso.

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Os túmulos no Mosteiro de Alcobaça

Os túmulos que vemos no Mosteiro de Alcobaça foram, aliás, pensados pelo próprio rei D. Pedro I, já depois da morte da sua rainha. Desde a primeira hora não imaginou outra hipótese que não a de ter a sua Inês do seu lado direito (actualmente, a posição dos túmulos foi alterada, mas lá chegaremos). De facto, nem é preciso ser um historiador de arte, ou escultor, ou arquitecto, para se perceber, olhando para cada uma destas sepulturas, que estamos perante duas inquestionáveis obras-primas.

Vivem em conjunto, mas podemos estudá-las, ao nível do simbólico, individualmente. E é também ao nível do simbólico que se voltam a unir. Como veremos.

Evitando formalidades, e começando, para variar, pelos homens.

Chegando à sepultura de D. Pedro, no facial da cabeceira, aparece-nos uma vibrante e detalhada roda. Ou antes, três rodas, concêntricas, que reproduzem, de acordo com algumas interpretações, e indo da maior para a mais pequena: a Roda da Vida (onde se relatam, possivelmente, os episódios de pessoas próximas dos amantes, desde os filhos ao próprio D. Afonso IV), a Roda da Fortuna (dedicada à vida de Pedro e Inês), e por fim uma corola de seis pétalas (simbolizando, muito provavelmente, a pureza do amor entre ambos, e a sua imortalidade e ressurreição).

As rodas e as pétalas de um dos faciais do Túmulo de D. Pedro

Facial da cabeceiro do Túmulo de D. Pedro

O Dia do Juízo Final no Túmulo de Inês de Castro

O Dia do Juízo Final, no túmulo de Inês

No facial do lado oposto, junto aos pés do rei, chega-nos o antagonismo: em contraposto à Roda da Vida, aqui temos a Boa Morte. Jogos de antíteses, um yin e yang, eros e thanatos, que se torna desarmante de tão comovente. Já os frontais exibem, não a despropósito, São Bartolomeu, patrono dos gagos – e, de acordo com fontes da altura, D. Pedro era mesmo conhecido pela sua gaguez.

Na parte superior, o rei encontra-se em rigorosa pose de monarca, mão direita a agarrar a espada, e de visão aberta para o céu, a encarar a morte de olhos vivos. Conta com um cão aos seus pés, símbolo da fidelidade (ao seu amor de sempre?) e acompanhante na sua viagem para os céus.

Do outro lado do transepto, vemos o túmulo de Inês. É tempo de ir até lá.

Chegados, verificamos que também D. Inês de Castro se encontra de pálpebras levantadas, pronta a que o anjos a levem à dimensão celestial pós matéria. Com a sua mão direita, brinca com um colar. Com a esquerda, guarda uma luva. D. Pedro parece ter querido esculpir Inês tal e qual como a via – graciosa, amável, gentil -, preferindo representá-la na suavidade destes gestos ao invés da habitual pose de mãos sobrepostas sobre o ventre.

Nas laterais do túmulo da rainha, encontram-se episódios da vida de Cristo, quer nos frontais, quer nos faciais. No entanto, é nestes últimos que esta manipulação dos símbolos ganha mais sentido. No facial da cabeceira, encontramos a crucificação de Cristo, e não é por acaso – o paralelismo entre a Paixão de Cristo e a Paixão de Inês é evidente, querendo dizer que ambos foram vítimas do amor que mostraram em vivos. Já no facial dos pés, vemos uma magnífica representação do Dia do Juízo Final, dividido por uma linha ondulante a separar o céu do inferno, e adornado com um diabo, no canto inferior direito, a engolir aqueles que não têm direito às portas de Deus. E é aqui que os dois túmulos entram, como que por código, em contacto. Porquê?

Regressemos novamente ao facial da Roda da Vida, no facial da cabeceira de D. Pedro.

Conseguimos ver, na sua parte superior, um rei sentado no seu trono, como que coroado. Assumimos de imediato tratar-se de D. Pedro. Deslocando os olhos para baixo, na parte inferior dessa mesma roda, e numa espécie de simetria negativa, vemos um rei morto, jazente no seu túmulo, virado de pernas para o ar. Mais uma vez o antagonismo a funcionar – o rei coroado por cima, o rei defunto por baixo.

Agora fixemos os olhos no rei morto. Só indo ao detalhe é que conseguimos lá chegar, no frontal desse minúsculo sepulcro, conseguimos ler o seguinte: A E FIN DO MUDO, que podemos traduzir por Aqui Espero o Fim do Mundo ou, em alternativa, Até ao Fim do Mundo. Ora, o tal Fim do Mundo, está figurado no túmulo de Inês (na escultura do Dia do Juízo Final), o que nos remete para um diálogo secreto entre ambos os mausoléus.

São muitos os investigadores que acreditam ser esta a última mensagem de D. Pedro para D. Inês – que esperaria por ela, no dia em que o julgamento divino acontecesse, brincando ainda com as palavras e dizendo, ao mesmo tempo, que o amor de ambos duraria até ao fim do mundo.

Constatar todo o cuidado com que o monarca preparou este ricochete simbólico entre o seu túmulo e o da sua amada consegue enternecer o coração mais duro, e prova que há, sempre houve, amores que não morrem. Tanto não morrem que ainda hoje, mais de seis séculos depois, Pedro e Inês continuam a falar, de pedra para pedra, até que o fim do mundo chegue e os junte novamente.

Curiosamente, há pouco tempo, a posição dos túmulos de Pedro e Inês mudou, deixando agora de estar lado a lado e virados para o altar. Estão hoje frente a frente para que, quando o Dia do Juízo Final chegar, a primeira coisa que vejam ao despertar seja o seu amado.

Mapa

Coordenadas de GPS: lat=39.548314 ; lon=-8.979186

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